quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Emily


A casa que se movia constantemente, naquele momento, concentrava-se em uma rua erma, e as longas paredes que protegiam sua real face estavam aos pedaços, como barro. No topo de cada coluna de três ou quatro metros mais ou menos, existiam grandes cabeças leoninas completamente maltratadas pelo tempo. Os animais revoltosos tornavam todo o cenário pouco convidativo, mas o corpo dela fora atraído pelas portas entreabertas.

Ao passar pelo corredor o cheiro de mofo e panos molhados invadiram suas narinas umedecendo seus pulmões. Havia uma luz insistente saindo como um facho do primeiro quarto, passos à sua frente. Pôs-se na ponta dos pés, então, pois acreditava piamente que se tornaria completamente silenciosa. Completamente gatuna. E atirou-se com leveza conta a luz. Seus olhos curiosos percorreram o recinto e fotografaram cada parte visível daquele cômodo.

Seu coração se encheu de uma surpresa vazia, como quem sente que já havia visto tudo aquilo antes. E havia mesmo. Um garoto negro em vestes azuis estava deitado na cama balançando os pés envolvidos por Nikes tamanho quarenta e dois. Embora a casa fosse completamente velha e fétida, aquele quarto estava no século correto. Era estranho observar lamparinas futuristas e ferraris espalhadas por prateleiras enquanto o forro se soltava devido à umidade.

Mais adiante a porta estava completamente aberta, o que despertara o delicioso prazer da descoberta. Enquanto caminhava equilibrando-se nos dedos, aquela curiosidade foi fervilhando, formigando e dando longas crias pela sua mente. Era um quarto rosa, infantil, com objetos maiores do que o normal. Na realidade, tudo parecia um pequeno cenário para uma criança grande. Estava vazio, mas não poderia deixar de sentir uma presença irritante, um vestígio impregnado naquelas paredes, um cheiro pertinente de alguém que acabou de sair. Alguém que acabou de fugir pela janela.

Havia outros quartos ao longo do corredor. Era curioso porque quando mais se olhava, mais parecia que os quartos se multiplicavam. Era mais ou menos como por um espelho de frente para outro, abrindo milhões de possibilidades em um simples reflexo. Assim se comportava aquela casa.

Enquanto examinava atentamente cada detalhe, a menina pulou janela adentro. À primeira vista, não passava de uma garota um pouco mais alta que qualquer mocinha de 13 anos. Mas, depois de alguns minutos e desconfortáveis olhadelas, parecia irreal aquela pele.

Estava agora deitada no carpete mastigado por pequenos roedores que se escondiam nas sombras das peculiares dobras das paredes. Recuperando-se da queda, iniciou uma série de movimentos grosseiros, como se estivesse sendo transmitida quadro a quadro. Aquilo assustava absurdamente a pequena Emily.

O choque ainda era eminente em seu rosto quando a boneca se aproximou com dificuldade por causa das articulações inacabadas. O sorriso dela dividia o rosto como se este fosse se soltar, empurrando Emily para um penhasco qualquer daquele quarto.

Desejou profundamente – a pequena Emily, claro. Bonecas jamais poderiam desejar coisa alguma – que nunca tivesse sido vista. Que tivesse passado como uma pequena gatinha por aquela porta, fazendo parte da casa e de todas as suas anomalias. Desejou o mais forte possível, até que sentiu o chão estremecer.

De repente os leões rugiram e casa rangeu violentamente, como se estivesse arrancando suas raízes anciãs daquele chão seco e profundo. O menino negro manteve-se deitado balançando os pés, ouvindo uma música alta demais para fazê-lo pensar. A boneca parou, então, mudando a sua expressão de uma forma inexplicável: sem formar traçados, apenas destruindo. Mudando de direção, atirou-se com seus movimentos robóticos para o canto mais distante da porta.

A menina encheu-se de pânico, mas não pôde deixar de observar toda a logística dos seres daquela casa para tomar seus respectivos lugares. Todos, exceto ela, sabiam o que fazer. As sombras corriam, saltitavam, gritavam e festejavam. A casa então levantou-se, guiada por leões de barro, cambaleando pela terra agredida, apoiando-se em raízes duras.

Estava tudo, finalmente, mudando de lugar.

9 comentários:

Unknown disse...

É como se vc pudesse parar a cada palavra, fechar os olhos, e pintar uma parte do quadro. E a medida que as palavras vão sendo adicionadas ao quadro, o quadro vai envivecendo, e vai se movendo, e ganha uma tonalidade diferente, como se cada palavra virasse realmente "algo" vivo no quadro. E quando vc coloca a ultima palavra no quadro e abre os olhos, e olha ao seu redor, tudo aquilo que antes apenas estava no quadro, vc percebe que a ultima palavra era você, e que agora vc está lá, vendo aquela casa-viva se movendo, uma das pernas passando por cima da sua cabeça, deixando um rastro de folhas e terra, deixando um cheiro úmido e velho, deixando uma sensação macabra e interessante.

Roger Jones disse...

coitadinha da Emily !
que bonta galáxia de objetos vivos ou mórbidos ao redor...

SONHO ESTRANHO disse...

Alguns teus textos tem um tom de fantasia que eu gosto, é uma mistura do macabro e o infantil. Sempre que eu leio, imagino um filme de terror bem colorido. Que assusta e conforta.
Quanto deve ser o aluguel da casa?

Anônimo disse...

MERECE uma continuação, ok? Isso rende um livro ^^ A imagem me fez lembrar o lacaio de libré e eu preciso tomar vergonha na cara e assistir o Labirinto do Fauno e Alice :/

Anônimo disse...

À medida que ia caminhando, lembrava-me as interpretaçoes de Alice no País das Maravilhas que fizemos nas aulas de literatura inglesa. Texto aparentemente infantil que nos remonta aos temores de nós, crianças grandes! Parabéns Tila!
Cássia David

• Viviane Nascimento • disse...

Alice, Pandora, quem mais? Todas juntas e mais um pouco! lindo :)

Zeppelin disse...

muito bom, tila! achei legal a viagem do texto! só achei meio longo, mas muito bom de qualquer forma =)

Anônimo disse...

Adorei o texto, tem toque de fantasia e surrealidade. Você escreve muito bem :).

Anônimo disse...

Só Salvador Dali pintaria as visões de Emily... só você escreveu sobre as visões de Emily... todos nós, leitores de Tila, vemos com os olhos de Emily.